terça-feira, 22 de março de 2011

LACUNAS DO DIREITO DE ACORDO HANS KELSEN

LACUNAS DO DIREITO DE ACORDO HANS KELSEN
Hans Kelsen (Praga, 11 de outubro de 1881 — Berkeley, 19 de abril de 1973) foi um jurista austro-americano, um dos mais importantes e influentes do século.

Tentarei mostrar aqui em especial o que verdadeiramente são Lacunas do Direito através da definição do grande professor de Direito Hans Kelsen: “Como, porém, o Direito vigente é sempre aplicável, pois não há lacunas neste sentido, esta fórmula, quando se penetre o seu caráter fictício, não opera a pretendida limitação do poder atribuído ao Tribunal, mas a auto anulação da mesma. Se, porém, o Tribunal também aceita a ideia de que há lacunas no Direito, então esta ficção teoricamente inaceitável realiza o efeito pretendido. Com efeito, o juiz e especialmente o juiz de carreira que está sob o controle de um Tribunal Superior, que não se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabilidade de uma criação do Direito ex novo, só muito excepcionalmente aceitará a existência de uma lacuna do Direito e, por isso, só muito raramente fará uso do poder, que lhe é conferido, de assumir o lugar do legislador”. Reproduzirei da melhor maneira possível esse tão interessante tema.
A prévia permissão mencionada para ordenar uma sanção que nunca foi estabelecida por uma certa norma geral preexistente é muitas vezes entregue aos Tribunais indiretamente, por meio de uma ficção. Trata-se da ficção de que a ordem jurídica possui uma lacuna. Logo significa que o Direito vigente não pode ser aplicado a um caso concreto porque não existe nenhuma norma tida como geral que se refira a um certo e determinado caso. A ideia a ser seguida é a de que é logicamente impossível aplicar o Direito efetivamente válido a um determinado caso concreto pela falta da premissa necessária.

Vamos agora reproduzir na íntegra o primeiro parágrafo do Código Civil Suisse: “à défaut d’une dispositive légale applicable, le juge prononce selon le droit contumier, et à défaut d’une coutume, selon les règles qu’il établirait s’il avait à faire acte le législateur”. Cabe aqui traduzir para nossa língua pátria, para facilidade de entendimento, o § 1º do Código Civil Suíço: “A lei aplica-se a todas as questões jurídicas para as quais contenha, segundo sua letra ou a sua interpretação, um preceito. Na hipótese de não ser possível encontrar na lei prescrição, deve o juiz decidir de acordo com o direito consuetudinário e, na falta deste, segundo a norma que ele, como legislador, teria elaborado”. É totalmente presumível que esta cláusula não se refere a casos em que o Direito estatuário ou mesmo o consuetudinário estipula positivamente o dever, ou melhor, a obrigação que o queixoso diz ter sido violada pelo réu no caso concreto. Nesses casos em particular, segundo o 1º parágrafo do Código Civil Suíço, existe uma norma legal aplicável. Esse respectivo dispositivo presumivelmente é referido apenas aos casos em que o dever ou obrigação do queixoso diz ter sido violada pelo réu não estipulada por uma norma geral. Nesses casos ora determinados, o magistrado não poderá ser obrigado a rejeitar a demanda oferecida pelo queixoso. O juiz possuirá a possibilidade de estipular, na condição especial de legislador, a obrigação sustentada para o caso concreto. Todavia ele possuirá outra possibilidade, a de rejeitar a ação oferecida pelo queixoso sob a alegação de que o Direito vigente não estipula a obrigação pedida.
Logo se o magistrado recorrer à aplicação dessa última possibilidade, não é presumida nenhuma lacuna do Direito. Ele indubitavelmente aplica o Direito válido. Ele não aplica, é verdade, uma regra afirmativa, obrigando indivíduos a determinada prestação. Só porque não existe nenhuma norma preexistente que possa obrigar o réu à conduta reclamada pelo queixoso, o réu é livre, segundo o Direito positivo, e não cometeu, portanto nenhum delito com a atitude. Se o magistrado rejeita a ação proposta ele aplica, por assim dizer, a regra negativa de que nenhuma pessoa poderá ser forçada a observar a conduta à qual não está obrigado pelo Direito.
A ordem jurídica não pode ter quaisquer lacuna. Se o magistrado está autorizado a decidir uma ação judicial como um verdadeiro legislador no caso de a ordem jurídica não conter nenhuma norma geral preexistente que obrigue o réu a realizar à conduta reclamada pelo queixoso ele não preenche uma lacuna do Direito efetivamente válido, mas acrescenta ao Direito efetivamente válido uma norma individual à qual não corresponde nenhuma norma geral. O direito efetivamente válido poderia ser aplicado ao caso concreto pela rejeição da lacuna. Pode-se afirmar que o magistrado, contudo, pode modificar o Direito para um determinado caso concreto, ela possui o poder de obrigar juridicamente uma pessoa que anteriormente estava juridicamente isento de qualquer obrigação.
Todavia, tudo que foi exposto nesse capitulo gera uma pergunta que deve ser respondida. Mas quando o juiz deve rejeitar uma demanda e quando deve criar uma nova norma que vá ao encontro dela? Como pode-se perceber o primeiro parágrafo do Código Civil Suíço e a teoria das lacunas que ele expressa categoricamente não fornecem nenhuma reposta satisfatória e mesmo clara. A intenção obviamente é a de que o juiz tem de assumir o papel de legislador se não existir nenhuma norma jurídica geral preexistente estipulando a obrigação do réu reclamada pelo queixoso, se o juiz considerar a total inexistência de tal norma insatisfatória, injusta e também iníqua. A condição sob a qual o juiz está autorizado a decidir uma certa demanda investido na figura de um legislador não é como a teoria das lacunas pretende. O fato de a aplicação do Direito efetivamente válido ser logicamente impossível, mas o fato da aplicação do Direito efetivamente válido é segundo a opinião do magistrado inadequada jurídica e politicamente.
O legislador, ou seja, o órgão autorizado pela Carta Magna a criar todas as normas jurídicas gerais, entende a possibilidade de que as normas que decreta podem, em determinados casos, levar a resultados corretos ou iníquos, uma vez que o legislador não possui nenhuma condição de antever, ou melhor, prover todos os casos concretos que podem vir a ocorrer. Ele, portanto, permite que o órgão aplicador do Direito, não a aplicar simplesmente as normas gerais ter um resultado insatisfatório. A grande dificuldade encontrada é que é praticamente impossível determinar de antemão os casos em que o magistrado atue como um verdadeiro legislador. Se o legislador pudesse prevê todos esses casos, ele então poderia formular tais normas de um certo modo que tornasse simplesmente supérflua a referida autorização para que o juiz atuasse como verdadeiro legislador. A fórmula “o juiz está autorizado a atuar como legislador se a aplicação das normas gerais existentes lhe parecer injusta ou iníqua” da bastante autonomia ao arbítrio do juiz, já que este poderá julgar a aplicação da norma geral criada pelo legislador inadequada em muitos casos. Logo é evidente que tal fórmula significa a total abdicação do legislador em favor do juiz. Esse então é o verdadeiro motivo pelo qual o legislador usa a ficção das “Lacunas do Direito”, ou melhor, a ficção de que o Direito verdadeiramente válido pode ser logicamente inaplicável a um determinado caso concreto.
A ficção restringe a autorização do juiz em duas direções distintas. Em primeiro lugar, ela limita a autorização aos casos em que a obrigação que o queixoso afirma que foi violada pelo réu não está estipulada em nenhuma norma geral. Essa norma exclui todos os casos em que a obrigação do réu pretendida pelo queixoso está positivamente estipulada por uma das normas gerais existentes. Essa restrição é inteiramente arbitrária. Estipular uma obrigação pode também ser tão injusto ou iníquo quanto se omitir. A total incapacidade do legislador de prever todos os casos possíveis pode, é evidente, fazer com que ele deixe de decretar uma norma ou leva-lo a formular uma norma geral e, desse modo, estipular obrigações que não teria estipulado caso houvesse previsto todos os casos.

A outra evidente restrição implicada na fórmula que manifesta ou usa a ficção das “Lacunas do Direito” tem principalmente um efeito psicológico que jurídico. Se o magistrado tem o poder de atuar como um verdadeiro legislador unicamente sob a hipótese de existir uma lacuna no Direito, isto é, sob a evidente condição de o Direito ser logicamente inaplicável ao caso concreto, ficando oculta a verdadeira natureza da condição, que é de aplicação do Direito apesar de logicamente possível parecer injusta ou iníqua ao juiz. Como efeito do que foi dito anteriormente pode ser o de que juiz faça uso dessa autorização unicamente naqueles caos razoavelmente raros em que lhe parece tão evidentemente injusto negar a demanda do queixoso que ele se sinta compelido a entender que tal decisão é totalmente incompatível com as intenções do legislador. Então, ele chega à conclusão: se o legislador pudesse antever esse caso concreto, ele teria estipulado a obrigação que o réu deveria cumprir. Como a ordem jurídica ainda não contém essa norma, ela não poderá ser aplicada ao caso concreto, e como ele, o juiz é autorizado a decidir a questão proposta, é exatamente aí que o magistrado deve atuar como legislador. A teoria das Lacunas do Direito, na verdade, para Hans Kelsen é uma ficção, já que é sempre logicamente possível, apesar de ocasionalmente inadequado, aplicar a ordem jurídica existente no momento em que a decisão judicial deverá ser tomada. Todavia, o sancionamento dessa teoria fictícia pelo legislador consegue produzir o efeito pretendido de restringir consideravelmente a autorização que o juiz possui de atuar como um verdadeiro legislador, ou seja, de emitir uma norma individual com força retroativa nos casos em consideração.

Ernani Eugenio Gayoso de Melo.

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